Projeto de lei PL 565/2022 – A violência doméstica na subtração internacional

setembro 4, 2022 No comments exist

A deputada CELINA LEAO HIZIM FERREIRA apresentou o projeto de lei PL 565/2022 que estabelece as condições para o reconhecimento automático da violência doméstica como exceção à obrigação do retorno do art. 13b da Convenção da Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças.

Esta proposta, porém, não resulta coerente com a Convenção da Haia de 1980 e com aquilo que foi concordado entre as nações.

Análise detalhada:

Art. 1º Esta Lei qualifica a exposição de crianças e adolescentes sob guarda de pais ou responsáveis legais brasileiros a situações de violência doméstica em país estrangeiro como situação capaz de submetê-los a grave risco de ordem física ou psíquica.

O art. 13b da CH80 não pode ser levantado sob a premissa de situações de violência doméstica.

A premissa do projeto lei não possui cabimento pois a o art. 13b trata de grave risco futuro (“no seu retorno”), não sendo suficiente o levantamento de hipóteses de mera capacidade possibilista (ou seja, onde basta subsistir uma probabilidade maior que zero) para gerar uma situação intolerável para o menor subtraído.

Por princípio, toda violência doméstica deve ser resolvida pelas autoridades competentes, portanto, o julgamento da guarda ou qual tribunal deverá julgar a guarda (a CH80 impõe o retorno, mas não necessariamente à residência habitual1Ver Relatório Explicativo, prágrafo n. 110), é um tema externo à CH80.

Uma violência doméstica é apenas um indício do art. 13b e pode se transformar em risco grave somente se for provado que a autoridade estrangeira não é capaz de solucionar este tema. Em outras palavras, não é decisivo o tipo de violência doméstica denunciada.

Não por acaso, assim determina a Resolução do CNJ n. 449/2022 (que, erroneamente, cita a “alínea d”, mas é evidente que se trata da alínea “b”):

O juiz poderá deixar de conhecer da alegação sobre grave risco contida no art. 13, alínea “d”, se a prova for de difícil ou demorada obtenção e a matéria puder ser tratada pelas autoridades do país de residência habitual da criança.

Art. 14.5 da Resolução do CNJ n. 449/2022
Art. 2º Os parâmetros desta Lei se aplicam ao artigo 13 da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, ficando as autoridades judiciais e administrativas brasileiras desobrigadas de ordenar o retorno de crianças e adolescentes ao país estrangeiro de residência habitual caso haja indícios de existência de violência doméstica naquela localidade.

A não obrigação ao retorno imediato não comporta uma obrigação de negar o retorno.

Como se pode imaginar, as considerações anteriores também cabem neste art. 2 (o ponto crucial é a existência de proteção no exterior, não de uma situação intolerável do passado), mas aqui se prefere assinalar que o poder judiciário brasileiro, ao constatar a existência de uma obrigação ao retorno, nos fatos, nega automaticamente este retorno.

Ao invés, as palavras da lei não são inúteis. Se as exceções levassem automaticamente ao não retorno, a Convenção não usaria a expressão desobrigação ao retorno.

Portanto, mesmo que fosse constatada a exceção do art. 13b em base a uma situação de violência doméstica, a legislação internacional permite ao magistrado de ordenar o retorno.

Consequentemente, parece inútil uma lei que busca elevar o grau de sensibilidade em relação a violência doméstica sendo que este ponto não impõe o indeferimento do retorno. 

Uma lei interna não pode reescrever uma Convenção Internacional

Não é possível alterar a CH80 com uma lei interna.

Esta é uma exceção claramente contrária aquela estabelecida na CH80 que, por sua vez, focaliza apenas e exclusivamente a criança.

Ao impor como uma exceção ao retorno qualquer situação de violência familiar, entrará no caldeirão também aquelas situações que não atingem diretamente ou indiretamente a criança envolvida.

Não é só nos outros países que existe violência doméstica.

Esta é uma verdade que parece óbvia, mas que deve ser relembrada, como bem pronunciada pelo Des. Calmon, Juiz de Ligação do Brasil, em recente seminário institucional: Vídeo

Porque uma criança deveria perder o seu direito de submeter o julgamento da sua guarda ao tribunal da residência habitual (que pode investigar melhor a sua realidade) somente porque é denunciada uma violência doméstica?

É ou não é verdade que no Brasil o poder judiciário é capaz de tutelar os direitos das crianças e impedir a continuação desta violência? Será que é razoável imaginar que a solução para a violência doméstica é raptar a criança para outro país? Por acaso no Brasil os juízes obrigam as vítimas a expatriar para assim conseguir obter proteção?!

Se a violência doméstica contra o outro genitor fosse um elemento relevante ela teria sido colocada no texto convencional. Acreditar que o país estrangeiro não será capaz a priori de resolver bem o conflito familiar é demolir os princípios fundantes da cooperação internacional.

 

Art. 3º Para efeito desta Lei, entre outros, podem ser considerados indícios de exposição da crianças e adolescentes à violência:
I – Denúncia no país estrangeiro de prática de violência doméstica, apresentada em órgãos administrativos ou judiciais;

Uma criança não é a priori exposta a todo e qualquer tipo de violência doméstica.

A existência de uma simples denúncia de violência doméstica no exterior não prova que a criança possa ter presenciado tal situação.

Antes disso, o que é violência doméstica? No Brasil, segundo a lei Maria da Penha, falas irônicas são consideradas como violência (art. 7.II), o que é impensável em outros países. Será que um tratado internacional pode depender da simples denúncia de violência em base à lei nacional para configurar o concordado grave risco de situação intolerável universal?

No processo n. 5015769-44.2018.4.03.6100/TRF3, a denúncia violência doméstica, convalidada em primeiro e segundo grau, se baseia em frases irônicas escritas pelo genitor em um chat, ou seja, algo extremamente improvável de atingir uma criança (que, no caso específico, tinha apenas 3 anos de idade).

Outra contradição: se a vítima não denuncia por medo, essa lei vai ser aplicada ao contrário no sentido de não ser possível constatar a violência doméstica?

Enfim, a pura existência de denúncia no exterior (sem julgamento, sem análise do mérito, etc) é um indício privo de significado e nega o princípio geral de proximidade do magistrado com a prova.

 

II – Medidas protetivas solicitadas ou determinadas no país estrangeiro; III – Laudos médicos ou psicológicos produzidos no país estrangeiro; IV – Relatórios produzidos por serviços sociais do país estrangeiro; V – Depoimentos de testemunhas ou das crianças e adolescentes cuja guarda está em disputa, desde que respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações do seu testemunho, nos termos da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 e da Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017; VI – Alegações constantes em processos de divórcio ou de separação reconhecidos no país estrangeiro; VII – Tentativas de denúncias da prática de violência doméstica que evidenciem a dificuldade de acesso ao sistema de proteção do país estrangeiro; VIII – Contatos com o consulado brasileiro na qual se solicite apoio em situação de violência doméstica.

A exceção do Art. 13b não se baseia em meras hipóteses.

Tudo aquilo que foi elencado pelo Projeto de Lei como indício útil ao reconhecimento de uma violência doméstica que aflija direta ou indiretamente o menor invade o poder discricional do magistrado de estabelecer o valor das provas.

Se é verdade que existe a presunção de inocência, tudo aquilo que foi elencado é irrelevante para os fins do art. 13b, não prova a existência de violência doméstica e, pior ainda, não prova que esta violência tenha consequências negativas na criança subtraída.

A Convenção da Haia de 1980 se baseia no princípio de que o juiz natural (aquele da residência habitual) deverá julgar a guarda justamente devido a sua proximidade com as provas, é impensável tentar substituir o magistrado estrangeiro.

Exatamente por isso que a CH80 trata de questões de elevada gravidade, que normalmente são facilmente bem provadas, não formam apenas meros indícios. O Tribunal das intenções é do período da caça às bruxas, não é possível retornar aos erros das eras pré-científicas. 

 

Parágrafo único. Na apresentação de uma ou mais ocorrências, as autoridades judiciais e administrativas brasileiras deverão prestar orientação e assistência aos pais ou responsáveis legais brasileiros, registrando que existe risco grave de que as crianças e adolescentes fiquem sujeitos a perigos de ordem física ou psíquica, caso haja o retorno ao país estrangeiro.

É irrelevante a nacionalidade dos genitores

Não parece ter cabimento a instituição de uma assistência especial ao genitor de cidadania brasileira. Toda criança deve ser tutelada, assim como todo e qualquer genitor. Se trata de uma questão de direitos humanos universais, não de cidadania.

O problema da subtração internacional é desvinculado da nacionalidade.

Não por acaso, como já relatado na mídia, o fato do Brasil ser conhecido internacionalmente como descumpridor da CH80 já levou até cidadãos estrangeiros a se refugiarem no país (exemplo, casos Markussen-Mathiesen). Essas crianças e/ou esses genitores devem receber tratamento humano diversificado por serem estrangeiros?

Inclusive estes casos são prova concreta de que a existência de denúncias não possui qualquer significado, pois os genitores abandonados, acusados de violência doméstica, foram julgados inocentes de todas as acusações recebidas no exterior.

Além disso, não é legalmente possível impor que meros indícios de violência doméstica possam justificar o não retorno de uma criança subtraída. Se a CH80 impusesse essa incoerência, o seu texto teria sido redigido de outra forma.

O paradigma na Convenção da Haia de 1980 é buscar o retorno seguro e não buscar motivações para negar o retorno.

As autoridades judiciais e administrativas brasileiras devem buscar auxiliar os próprios cidadãos sobre como obter uma proteção idônea no exterior.

Deduzir que no exterior se subsistem riscos graves a priori ou que só no Brasil uma pessoa tem os seus direitos tutelados é um evidente reflexo de puro fanatismo nacionalista.

Em uma comunidade internacional e em uma sociedade que preza a ciência, esses critérios são inaceitáveis.

Só é possível falar de risco no exterior quando não existem leis de proteção adequadas, quando a vítima buscou as autoridades locais e não obteve proteção efetiva, quando está impossibilitada de requerer os próprios direitos (por exemplo, é imigrante ilegal e não existe solução para custear um advogado), etc.

Em uma subtração, a função do poder judiciário, no Estado de refúgio, é requerer ao Estado de origem condições capazes de superar todas as questões levantadas pelo genitor subtrator.

Exatamente com este fim foi criada a rede de Juízes de Ligação da Haia. O Juiz de Ligação brasileiro, juntamente com aquele estrangeiro, poderá propiciar até mesmo a tomada de decisões espelhos (o juiz estrangeiro, competente sobre a guarda, poderá deferir a medida de proteção requerida pelo juiz brasileiro que julga o retorno).

Garantir o retorno da criança significa usar o poder judicial para tomar medida adequadas de proteção (lembrando que buscar um acordo entre as partes é a melhor medida de proteção possível), não abusar deste poder buscando motivações apriorísticas para negar o retorno.

A CH80 permite a exceção à não obrigação do retorno somente em situações restritivas e graves, bem comprovadas pela parte contrária ao retorno, vinculadas ao futuro, relativas à criança e  não mitigáveis pelas autoridades da residência habitual.

O Projeto de Lei, deve acompanhar, no mínimo, os princípios enunciados no Guia de Boas Práticas do Art. 13b publicado pela Conferência da Haia de 1980, que resulta até traduzido para o Português.

Não é possível alterar o conceito de grave risco que é bem definido no texto convencional e nos trabalhos da Conferência da Haia.

 

Art. 4º De posse da documentação apresentada, as autoridades judiciais deverão, no prazo de 24 horas, providenciar a tutela antecipada da guarda aos pais ou responsáveis legais brasileiros, a qual deverá se estender, no mínimo, pelo prazo necessário à tradução da documentação e à sua apreciação pelo Poder Judiciário.

A Convenção da Haia de 1980 proíbe a alteração da guarda no Estado de refúgio até quando o retorno não for julgado.

Se o Brasil não quer aplicar a CH80 ele deve retirar a sua assinatura pois não é possível pretender violar disposições literais. O art. 16 da CH80 é bem claro quanto à impossibilidade de estabelecer uma guarda provisória.

Essa regra não fere o melhor interesse da criança pois, por exemplo, o retorno deve ser decidido em 6 semanas, como estabelece o art. 11 da CH80. Por 6 semanas de estadia é necessário definir a guarda provisoria? Não é porque o Brasil falha no quesito celeridade que então conquista magicamente o direito de legislar uma nova norma internacional.

A visitação provisória é o verdadeiro problema a ser resolvido na realidade brasileira.

O que deveria ser tutelado de forma antecipada é o direito de visitação provisória (art. 7b da CH80).

O que se deveria proteger prioritariamente no âmbito de uma tutela antecipada é o direito da criança (visitação é, antes de tudo, um direito da criança – art. 3, 7, 8, 9, 10, 16, 18 e outros, da Convenção dos Direitos das Crianças), não o poder do genitor sequestrador em relação ao menor.

A guarda exclusiva efetiva do genitor sequestrador, que acaba sendo a realidade no solo brasileiro, não encontra qualquer impedimento na ausência de uma oficialização judicial. O genitor subtrator (normalmente cidadão brasileiro) recebe automaticamente carta branca das instituições brasileiras. Unilateralmente, ele pode requerer a cidadania brasileira para a criança, pode inscrevê-la em uma escola, pode viajar usando meios próprios, pode decidir cuidados médicos, pode vaciná-la, etc.

Ao contrário de como deveria ser, nos processos de guarda, que acabam sendo abertos no Brasil pelo genitor subtrator, se observa a concessão imediata de guarda provisória exclusiva. Para este fim, se ignora até a necessidade de oitiva prévia do genitor abandonado.

Nesses processos, nenhuma obrigação é estabelecida em relação ao regime de visitação provisória, mesmo após anos de pendência processual (muitas vezes o andamento fica bloqueado pela impossibilidade notificar corretamente o genitor no exterior).

Nos fatos, as crianças vítimas de subtração passam anos aguardando o julgamento da CH80 na Justiça Federal e sem qualquer contato com o genitor abandonado. Nada se decide na esfera Federal e naquela Estadual (do procedimento de guarda) sobre as visitações.

 

§1º A tradução da documentação ficará a cargo do Estado Brasileiro.
§2º As autoridades brasileiras poderão solicitar laudos médicos e/ou
psicológicos elaborados em território nacional para compor o conjunto probatório da existência de violência doméstica.

O ônus da prova é da parte contrária ao retorno, não cabe ao poder judiciário retardar o julgamento para buscar provas capazes de negar retorno.

Não é possível inverter o ônus da prova ou atribuí-la ao poder judiciário. A investigação profunda sobre a realidade familiar deve ser feita no Estado de origem, no seu juízo natural.

O Brasil pode colocar o máximo empenho nas suas investigações, mas nunca irá triscar a qualidade alcançável pelo Estado da residência habitual que possui extrema facilidade de acesso às provas e testemunhas.

Afinal, no âmbito das leis internas, é ou não é um princípio jurídico incontrovertível a proximidade do juiz com a prova?!

Não existem motivos lógicos para o judiciário brasileiro se considerar melhor do que aquele estrangeiro.

A falta de invocação dos Juízes de Ligação da Haia é outra grave falha do poder judiciário.

A única busca que o poder judiciário brasileiro deve fazer é utilizar os Juízes de ligação da Haia para obter do Estado estrangeiro garantias concretas sobre a existência de tutelas adequadas em favor da criança e se existe a possibilidade de espelhar nesta jurisdição eventuais determinações de proteção consideradas adequadas pelo magistrado brasileiro: Vídeo

Uma comunidade internacional se baseia na confiança mútua, mas se as autoridades brasileiras acreditarem que os seus cidadãos procuram a jurisdição brasileira porque o Brasil julga melhor do que os outros países ou porque defende com mais justiça o direito das crianças, todo e qualquer tratado se transformará em letra morta (expressão bem enfatizada no Relatório Explicativo da CH80).

As exceções não podem virar uma regra. Por trás de toda subtração parental existe um conflito conjugal e converter isso automaticamente em violência doméstica, estendendo-o até mesmo ao âmbito parental, é completamente incoerente, significa negar, em quase todos os casos, o retorno de toda e qualquer criança subtraída.

 

Art. 5º Configurada a violência doméstica sem que medidas efetivas tenham sido tomadas no país estrangeiro para proteger a vítima e as crianças e adolescentes sob sua guarda, restará configurada a situação de grave risco de ordem física e psíquica, nos termos do art. 13, alínea “b”, da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças.

A exceção do art. 13b é exclusivamente vinculada a criança, não ao genitor.

Não é possível estender artificialmente a proteção da CH80 ao genitor subtrator. A CH80 não impõe qualquer tutela em relação ao genitor subtrator como empecilho ao retorno imediato.

Cada caso concreto é permeado de particularidades, não é possível tentar imaginar e descrever todos os casos possíveis. Não por acaso, a CH80 possui um texto reduzido com muitas condições genéricas. Não é possível construir uma norma detalhada sobre as hipótese da situações da vida sem cometer graves erros.

Como já dito, no Brasil os conflitos conjugais são resolvidos pelo poder judiciário brasileiro, sem a necessidade de expatriação das partes, portanto, é natural que a proteção das subtrações seja limitada à criança.

Não todo conflito conjugal transborda em um conflito parental e a para a psicologia não existem pessoas com íntimo violento, mas situações que geram alimentam a prática violência: Vídeo

A proteção do genitor contra a violência é competência de um procedimento específico que não é pertinente àquele da guarda. Se um genitor sofre violência, ele vai denunciar o fato, serão decididas medidas de proteção, será ativado um processo criminal, etc. O processo de guarda não pode se transformar em um processo de violência familiar: Vídeo

 

Uma boa solução à correta aplicação da Convenção da Haia de 1980 está, por exemplo, na aprovação de enunciados como estes: teses jurídicas

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