Retenção nova ou velha?

outubro 30, 2022

O que significa a expressão «retenção nova» e/ou «retenção velha» na aplicação da Convenção da Haia de 1980 sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças?

Será que realmente existe uma retenção nova nos casos de subtração internacional de menor?

Rentenção Nova Convenção da Haia de 1980

Qual é o significado de «retenção»?

Segundo o dicionário, retenção possui as seguintes definições:

re·ten·ção
sf
1 Ato ou efeito de reter(-se).
2 Estado do que demora ou atrasa; delonga, retardamento.
3 Conservação de alguma coisa em poder de alguém; posse, reserva.
4 V retentiva.
5 Jur Ato ilícito que consiste na manutenção de pessoa cativa em algum lugar particular, impedindo-a de sair ou de obter ajuda; detenção.
6 Med Acumulação de substâncias e/ou de humores nos vasos ou cavidades, de onde normalmente são evacuados.
7 Jur Direito assegurado ao possuidor de guardar a coisa disputada em juízo.

Como visto, no caso específico do âmbito legal, parecem existir dois tipos de retenção:

  • retenção ilícita (de pessoas), e/ou;
  • direito de retenção (de bens).

O direito de retenção se encontra bem definido, por exemplo, no art. 571 do Código Civil. É um meio legítimo de autotutela entre um credor e o devedor em relação a um bem disputado.

Ao invés, o uso desta palavra como representação de um ato ilícito parece ser inusual. Não aparece no código civil, no código penal ou na jurisprudência brasileira. O seu uso se mostra limitado aos julgamentos da Convenção da Haia de 1980. 

Em conclusão, a eventual atribuição de um significado jurídico no seu contexto de ilegalidade possui um elevado grau de liberdade ou de imprecisão.

É adequado falar de «retenção» em uma subtração de menor?

Manter uma criança em um determinado local sem a autorização de ambos genitores faz parte, inegavelmente, do conceito de retenção ilícita.

Porém, observando o significado anteriormente citado, não se observa uma proximidade com a ideia de detenção (cabendo precisar que retenção é normalmente mais próxima a ideia de detenção de tipo provisório).

Normalmente toda criança aceita facilmente viver em um novo ambiente, não se sente em uma prisão. Uma criança até uma certa idade não possui opiniões ou gostos fortes, tem um elevado grau de adaptação. Uma criança é como uma esponja, está sempre pronta para absorver novas situações e informações. Menor a idade, maior será a sua disponibilidade.

Além disso, o genitor ou o adulto subtrator com quem está convivendo, normalmente, não a impede de fazer uma vida “normal”. É comum observar uma criança subtraída que passa o dia na escola, vai em parques, faz esportes,  etc.

Em uma primeira análise, a «retenção», no âmbito jurídico, não parece ser uma boa expressão para identificar uma situação de subtração.

O que pesa nesses casos é, “apenas”, a exclusão do contato da criança com um dos genitores. Não é uma realidade comparável com uma verdadeira retenção que corresponde a uma vida de amplas constrições como em uma cadeia ou cativeiro.

Não é também possível afirmar que o subtrator possui a “posse” da criança pois a guarda efetiva não representa uma posse. Uma criança não é um objeto e nenhum guardião tem o poder de superar os seus direitos.

Qual é o conceito de «retenção» na Convenção da Haia de 1980 (CH80) ?

No texto da CH80 se observa a existência de dois tipos de comportamentos que integram a definição de subtração de menor.

O primeiro deles é a transferência ilícita do menor para um novo domicílio habitual (habitual residence), ou seja, levar a criança para outro local sem o consentimento daqueles que possuem o poder familiar (para semplificar a redação, aqui se levará em conta o genitor abandonado com direito de guarda). Normalmente, se subentende o direito de decidir o local de residência da criança como um componente deste poder familiar.

O segundo comportamento ilícito é o ato de não retornar com a criança para o domicílio habitual após a realização de uma viagem, inicialmente, lícita. Em outras palavras, é também considerado uma subtração de menor não respeitar a data de retorno de uma viagem de férias concordada com aquele que também possui o poder familiar.

Para manter uma elevada precisão e universalidade com as diferentes jurisdições, a CH80 não usa a palavra «subtração» ou similares.

O legislador internacional, intencionalmente, fez questão de repetir a todo momento “transferência e/ou retorno desrespeitado (retenção)” para indicar globalmente a atitude indevida que visa combater.

«Retenção» é uma boa tradução da CH80? 

Como já foi citado várias vezes na sessão “terminologia” deste blog, as imprecisões na tradução da Convenção da Haia de 1980 não são poucas e muitas vezes de elevada gravidade.

Vale a pena verificar se «retenção» também é uma tradução “ao pé da letra” do texto em língua estrangeira que acaba não coincidindo com a necessária conversão à realidade brasileira.

A definição do ilícito da subtração foi estipulada no artigo 3 da CH80.

Essas são as versões nas duas línguas oficiais da Conferência da Haia:

  • The removal or the retention” (inglês: remoção ou retenção)
  • Le déplacement ou le non-retour” (francês: transferência ou retorno não realizado)

Essas são as demais versões oficiais em outras línguas:

  • A deslocação ou a retenção” (portugal)
  • El traslado o la retención” (espanhol: transferência ou retenção)
  • Il trasferimento o il mancato rientro” (italiano: transferência ou retorno não realizado)
  • Het overbrengen of het niet doen terugkeren” (holandês: transferência ou retorno não realizado)

Observando o contexto da CH80, «retenção», não parece uma boa tradução no artigo que define a subtração.

É criticável até mesmo a versão oficial em inglês que, não por acaso, em alguns textos independentes mais recentes é substituída pela expressão “non-return“.

Uma expressão mais adequada para a tradução do texto convencional poderia ser “não-retorno”, “retorno descumprido”, “retorno infringindo” ou outros sinônimos.

Qual é a origem da qualificação «nova» ?

Em decisão de 2013, o Min. Humberto Martins , no voto como Relator do REsp 1351325/RJ, definiu a expressão «retenção nova» da seguinte forma:

“Ocorre que, nos termos do art. 12 da Convenção, não transcorrido mais de 1 ano entre o sequestro e o pedido administrativo (retenção nova), não caberia falar em integração do infante ao novo meio”
Ministro Humberto Martins do STJ

Passados quase 10 anos de evolução da aplicação da Convenção da Haia de 1980, este termo foi repescado pelo Min. Herman Benjamin (REsp 1723068 / RS).

A partir daí, parece estar surgindo uma rápida difusão pois já foi reutilizado por Ministros de outra turma (por exemplo: EREsp 1723068/2021, REsp 1959226/2022, REsp 1842083/2022)

Portanto, «retenção nova» seria a situação em que o pedido de retorno foi realizado no prazo de 1 ano da subtração. Consequentemente, «retenção velha», ou outro sinônimo, seria aquela realizada após este prazo.

Existe o conceito de «retenção nova» ou «retenção velha» na CH80?

Em base a jurisprudência nacional a resposta parece ser claramente sim.

Assim resulta no informativo de jurisprudência do STJ (Edição Especial n.5 de 18/07/2022):

No campo doutrinário, prevalece a orientação segundo a qual as exceções constantes da parte final do art. 12 e da alínea b do art. 13 do Pacto da Haia somente excluem o Estado Contratante da obrigação de repatriar a criança (objeto de sequestro internacional) quando se tratar de retenção velha, ou seja, o exercício da pretensão de repatriação do menor se der em prazo superior a um ano, contado da data da transferência ou da retenção indevidas.
Informativo de Jurisprudência do STJ

Será que realmente a doutrina, pelo menos aquela internacional, concorda com esta premissa?

Será que é também possível alterar o significado literal dessas expressões?

O que estabelece o art. 12 da CH80?

Assim foi traduzido o artigo 12 da Convenção da Haia de 1980, como publicado no decreto n. 3.413/2000:

Artigo 12
Quando uma criança tiver sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3 e tenha decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da transferência ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado Contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o retorno imediato da criança.

A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após expirado o período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deverá ordenar o retorno da criança, salvo quando for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo meio.
(…)
Convenção da Haia de 1980 sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças

Como se pode observar, o ponto focal deste artigo é a ação (ou momento/duração da ação) do genitor abandonado.

Se o genitor abandonado demorou mais de 1 ano para requerer o retorno, a consequência será X. Se demorou menos de um ano, será Y.

Adentrando no conceito do melhor interesse da criança, foi encontrada uma solução que concilia, inteligentemente, diversas questões ao mesmo tempo, como, por exemplo:

  • Um genitor abandonado que demora muito tempo para requerer o retorno mostra ter aceitado a subtração e/ou não mostra um interesse equilibrado pelo bem-estar do filho(a);
  • Toda criança tem o direito de conviver com ambos genitores, independentemente de um eventual retardo do genitor abandonado ao denunciar a subtração e se isso for o melhor para si;
  • Um genitor abandonado não pode usar a CH80 como instrumento para atacar o outro genitor, o retorno não deve ser requerido se não existe um verdadeiro interesse pelo bem-estar da criança;
  • Uma criança que se adaptou a uma certa realidade social devido a uma lentidão inaceitável do genitor abandonado de requerer o seu retorno, não deve ser obrigada a se readaptar à outra realidade (será o genitor abandonado a ter que se transferir com meios próprios se considerar prioritário a proximidade com a criança subtraída).

Querendo estabelecer uma qualificação, se poderia dizer que o art. 12 diferencia um pedido de retorno “lento”/”atrasado” de um pedido de retorno “rápido”/”no prazo”.

O que estabelece o art. 13b da CH80?

Esta é a tradução oficial do art. 13b da CH80:

Artigo 13
Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o retorno da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se oponha a seu retorno provar:
(…)
b) que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.
Convenção da Haia de 1980 sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças

Como se pode observar, o foco do art. 13b é a existência de uma situação de risco grave para o futuro da criança.

Se quem é contrário ao retorno prova a existência de um futuro risco grave exclusivamente contra a criança, a consequência será X, caso contrário, será Y.

Qual é o significado natural de «retenção nova» / «retenção velha» em uma subtração?

Precedentemente, foi constatado que retenção na CH80 significa não retornar com a criança para o domicílio habitual.

Consequentemente, a expressão «retenção velha» só pode ser interpretada como um retorno não cumprido há muito tempo atrás. Por exemplo, uma criança deveria ter retornado à casa após dois meses de férias, mas, passados anos, não mais retornou.

Ao invés, «retenção nova», é naturalmente interpretada como um retorno não cumprido recentemente. Ou melhor, querendo ser mais preciso, uma «retenção nova» subentende a existência anterior de uma «retenção velha».

Ao contrário, se não subentendesse uma velha, deveria ser apenas «retenção recente». Portanto, «retenção nova», no contexto literário nacional, deveria ser a situação de uma criança que sofreu uma segunda subtração, na qual a primeira deixou de ser remediável.

Retenção é o ato de reter a criança, de não permitir o seu retorno ao domicílio habitual. Retenção não pode significar magicamente o ato do genitor abandonado (ou daquele que possuía o poder familiar de decidir o local do seu domicílio habitual) de requerer o retorno.

Uma retenção é retenção com ou sem a sua denúncia.

Além disso, a rigor, todo dia que um genitor abandonado passa sem contato com o filho representa uma renovação da «retenção velha» por parte genitor subtrator ou uma constante geração de uma «retenção nova». O que se perdeu com a subtração de ontem é diferente daquilo que se perde com a falta de contato de hoje e com a falta que ocorrerá amanha.

É impróprio falar de «retenção velha» em uma situação continuada no tempo. Justamente, em muitos países, o crime de subtração não possui prescrição baseada na data inicial da sua prática.

Infelizmente, no Brasil, com não pouca divergência, a doutrina/jurisprudência não considera, por exemplo, o crime de subtração de incapaz (art. 249, CPC) ou de subtração de criança (art. 237, ECA) como um crime permanente (art. 111, inc. III, CPC).

Emfim, o STJ parece ir além dos seus poderes quando usa a expressão «retenção nova» ou «retenção velha» para situações que não possuem mínima correspondência com o significado literal e oficial na língua portuguesa.

Segundo a doutrina internacional, existe o conceito de «retenção nova» ou «velha» na CH80?

Como bem analisado anteriormente, no art. 13b da CH80, não existe qualquer menção, direta ou indireta, de situações que possam ser colegáveis à expressão «retenção nova/velha» ou ao momento em que o genitor abandonado decide requerer o retorno.

O art. 13b leva em consideração a possível comprovação, por parte de quem impugna o retorno, da existência de futura graves situações intoleráveis, relativas exclusivamente à criança.

Muitos imaginam que alterar o domicílio habitual se enquadra em uma situação intolerável, mas isso é apenas uma dedução sem conexão científica. Não por acaso, existe a adoção internacional ou o fato de que toda criança pode se transferir ilimitadamente para outros países se, aqueles que possuem o poder familiar, assim concordarem.

O art. 12 da CH80 é o único que leva em conta, apenas parcialmente, o momento ou duração da retenção – que aqui se interpreta, em concordância com a CH80, como a decisão de impedir o retorno da criança.

Como já demonstrado, o diferencial no art. 12 não é a retenção por si só, mas a vontade do genitor abandonado de denunciar a subtração ou requerer o retorno.

Usar o termo «retenção velha» é muito perigoso porque passa até mesmo a ideia de que na CH80 a duração da subtração possa influir na decisão do retorno.

Assim bem ensina o Relatório Explicativo da CH80:

Em terceiro lugar, no que se refere ao terminus ad quem, o artigo consagra o momento de apresentação da demanda, ao invés da data da resolução, já que o possível atraso da ação das autoridades competentes não deve prejudicar os interesses das partes amparadas pela Convenção
Relatório Explicativo da CH80 – § 108

Por consequência lógica: (i) se é verdade que a lentidão do poder judicial pode transformar, de fato, toda subtração em uma retenção ilícita de longa duração, e; (ii) se é juridicamente irrelevante uma retenção que se tornou demasiadamente longa devido exclusivamente à morosidade da justiça de refúgio, logo, a duração efetiva ou o momento de uma retenção é, isoladamente, um elemento irrelevante na CH80.

Além disso, é evidente que a CH80 permite que seja o ordenado o retorno até mesmo no caso de denúncia feita após um ano da subtração e quando a criança se encontra adaptada ao Estado de refúgio. Não por acaso, assim já ocorreu em brilhante julgamento aqui exposto.

As disposições da CH80 impõem o retorno o imediato, nunca impõem condições para negar este retorno. Ao máximo, a CH80 estabelece condições que excluem a obrigação do retorno, o que não deve ser interpretado como uma obrigação de negar este retorno.

O legislador internacional manteve louvável coerência entre a ideia de justiça e o melhor interesse da criança. Não é porque o tempo transcorrido gera uma adaptação a uma realidade injustica que esta injustiça deverá ser obrigatoriamente mantida.

Afinal, até mesmo um carcerado adulto (que não se adapta tão facilmente como as crianças) mantém o direito de poder um dia retomar a sua liberdade.

«Retenção nova» e/ou «retenção velha» são expressões adequadas na aplicação da CH80?

Por tudo aquilo que foi analisado, citar «retenção nova» ou «velha» para classificar juridicamente uma subtração é uma grave violação do rigor cientifico da matéria.

Assim como também é cientificamente grave atribuir à «retenção nova» ou «velha» o conceito inatural do tempo passado entre a subtração e a oficialização do pedido de retorno.

Se existe a necessidade de inventar um termo novo, para invocar resumidamente o elemento diferencial do art. 12 da CH80 nas ementas (que por sua vez distingue a possibilidade de levar em conta a possível adaptação da criança subtraída, ao Estado de refúgio), este, poderia ser, por exemplo:

  • denúncia (de subtração) velha/recente;
  • pedido de retorno velho/recente;
  • adaptação prescrita/irrelevante;
  • etc

Qualquer expressão focalizada no momento ou na duração da subtração é incapaz de refletir as disposições da CH80 ou da relativa doutrina.