Judiciário brasileiro menospreza a Convenção da Haia de 1980

abril 6, 2024

No recente seminário promovido pela Escola dos Magistrados do TRF3, observa-se uma tendência preocupante no judiciário brasileiro de menosprezar a Convenção da Haia de 1980 e desconsiderar os países envolvidos em sua redação. Em suma, se este é o desfecho após anos de estudos nacionais, é inevitável considerar a CH80 como uma letra morta.

A morte da Convenção da Haia de 1980

O que se diz da Convenção da Haia de 1980?

Com o fim de evitar mal-entendidos, aqui se reportam alguns dos exatos pronunciamentos proferidos pelas autoridades brasileiras e especialístas na matéria.

Juiz de Ligação da Haia, Des. Calmon:

  • vamos contextualizar o momento histórico em que a Convenção foi editada… a criança ainda não era tratada no plano internacional como sujeito de direito (…) ela era tratada como objeto
  • realizar workshops que permitam que nós possamos cada vez mais difundir o conhecimento e informação sobre as convenções…. realizaremos … o primeiro encontro regional de juizes de enlace da america latina e do caribe… vamos tratar de questões que podem não ser tão simpáticas aos Estados Unidos ou Canada
  • não é uma convenção de direito de família, é uma convenção que trata de instrumentos de cooperação para permitir que aja efetiva solução do caso no que tange a ideis do retorno

CNJ, Prof. Piovesan:

  • revisitar a Convenção de Haia a partir do Human rights approach trazendo essa dimensão e esse paradigma a prespectiva de gênero e a perspectiva das crianças como sujeitos de direito

Adv. Blenda:

  • foi muito bem lembrado aqui, especialmente depois da Constituição de 88. Qual que é o nosso paradigma? É a criança como um sujeito de direito e uma proteção integral para essa criança

UFMT, Prof. Mazzuoli:

  • temos que reinterpretar o artigo 13 da Convenção…. e temos que interpretar ele a luz do direito nacional dos direitos humanos …. o melhor interesse da criança… não mais como objeto, mas como um sujeito de direito… essa dificuldade ta exatamente nesse estreito limite desse artigo 13 que não foi feito para isso, não foi pensado para isso, não foi discutido para isso

Como é vista a Convenção da Haia de 1980 pelas autoridades brasileiras?

Como relatado, existe uma tendência de considerar que a Convenção da Haia de 1980 sobre o Sequestro Internacional de Crianças deve ser corrigida ou reinterpretada.

Muitos argumentam que a CH80 defende o melhor interesse da criança considerando-a mais como um objeto do que como um sujeito de direito. Em consequência desta hipótese, se deduz a responsabilidade da justiça brasileira de sobrepor os princípios nacionais de direitos humanos ao texto convencional.

Na prática, ao avaliar as exceções ao retorno, como o Artigo 13b, a história da dinâmica familiar deve ser examinada minuciosamente.

Se esta análise revelar qualquer situação de conflito familiar, a missão da justiça será recusar o retorno para assim proteger a criança envolvida.

Com base na convicção de que a autoridade brasileira deve garantir o bem-estar da criança subtraída, do genitor subtrator, do cidadão brasileiro, etc, se impõe como única forma alcançar este objetivo a manutenção da mesma sob o teto da própria jurisdição.

Qual é a consequência da óptica nacional em relação à Convenção da Haia de 1980?

Com base nos preceitos expressos anteriormente, torna-se evidente que o retorno de uma criança subtraída do Brasil só seria decretado raramente.

Geralmente, um genitor subtrai o próprio filho quando existe um conflito conjugal. Essa subtração se transforma em um caso internacional quando este genitor possui familiares em outra nação e/ou esta ciente das leis e práticas do Estado de refúgio permissivas à subtração.

Embora existam relatos de subtrações motivadas pelo clima frio, é impensável considerar essa situação, de teórica ausência de um conflito conjugal, como uma regra.

De fato, as premissas aplicadas pelas autoridades brasileiras transformam a legislação internacional em uma lei que legaliza as subtrações. 

Neste cenário de inversão da essência da CH80, a vítima parece ter maior chance de combater a subtração buscando a Justiça Estadual, especializada em direito de família.

É um grave paradoxo observar a Justiça Federal tentando corrigir a CH80 ao avaliar o melhor interesse da criança, mesmo não estando habituada a lidar sequer com disputas entre particulares e/ou transformar um processo de aplicação da CH80 em um caso de guarda sem a devida instrução.

A Convenção da Haia de 1980 foi escrita por um legislador que considerava a criança como objeto?

Em base à Convenção de Viena sobre os Direitos dos Tratados, a interpretação dos tratados internacionais deve respeitar os trabalhos preparatórios e todo o material colocado à disposição do legislador.

Diferentemente dos pareceres das autoridades brasileiras, assim ensina o Relatório Explicativo da CH80:

Parágrafo n. 21: “Sobre este aspecto, se manifestou com razão que “a norma jurídica que repousa sobre “o interesse superior do menor” é, a primeira vista, de tamanha imprecisão que parece mais um paradigma social do que uma norma jurídica correta. Como dar consistência a esta noção para decidir qual é o interesse último do menor sem cair em suposições, que só têm a sua origem no contexto moral de uma determinada cultura? Ao introduzir o termo “último” na equação, se nota de imediato sérios problemas dado que o enunciado geral da norma não permite saber claramente se “o interesse” do menor que se quer proteger é o que segue imediatamente a resolução ou da sua adolescência, da sua existência como jovem adulto, da sua idade madura ou da sua velhice”;

Parágrafo n. 22: “(…) não podemos ignorar o fato que o recurso, por parte das autoridades internas, a semelhante noção implica o risco de traduzir manifestações de particularidades culturais, sociais, etc. de uma dada comunidade nacional e, portanto, no fundo, formular julgamentos de valores subjetivos sobre a outra comunidade nacional da qual o menor acabou de ser arrancado”;

Parágrafo 23: “Pelos motivos invocados, entre outros, a parte dispositiva da Convenção não contém alguma referência explícita ao interesse do menor como critério corregedor do objetivo convencional, que consiste em garantir o retorno imediato dos filhos transferidos ou retidos de forma ilícita. Não obstante, não cabe deduzir deste silêncio que a Convenção ignore o paradigma social que proclama a necessidade de levar em conta o melhor interesse dos menores para resolver todos os problemas que os afetam. Muito pelo contrário, já no preâmbulo, os Estados signatários declaram estar “firmemente convictos de que os interesses da criança são de primordial importância em todas as questões relativas à sua guarda”: justamente, esta convicção, os levaram a elaborar a Convenção, “desejando proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de mudança de domicílio ou de retenção ilícitas”;

Parágrafo n. 24: “(…) entre as manifestações mais objetivas que constituem os interesses do menor está o direito de não ser transferido ou retido em nome do direito mais ou menos discutível sobre a sua pessoa. Neste sentido, convém lembrar a Recomendação 874 (1979) da assembleia parlamentar do Conselho Europeu cujo primeiro princípio geral evidencia que “os menores não devem ser considerados propriedade dos seus pais, mas devem ser reconhecidos como indivíduos com direitos e necessidades próprias (…)”;

Parágrafo n. 34: “Colocar em prática este método exige que os Estados signatários da Convenção estejam convencidos de que pertencem, apesar das suas diferenças, a uma única comunidade jurídica no sentido que as autoridades de cada Estado reconhecem que as autoridades dos demais – da residência habitual da criança – são por princípio aquelas que estão melhor situadas para decidir, com justiça, sobre os direitos de guarda e de visita. Portanto, uma invocação sistemática das exceções mencionadas, ao substituir a jurisdição da residência do menor pela jurídica eleita pelo sequestrador, derrubará todo o edifício convencional ao esvaziar o espírito de confiança mútua que o inspirou”

Parágrafo n. 39: “Tal autonomia não significa que as disposições pretendam resolver todos os [tipos de] problemas que abrangem as subtrações internacionais de menores. Muito pelo contrário, na medida em que os objetivos da Convenção, mesmo sendo ambiciosos, tem um alcance muito concreto, o problema do fundo do direito de guarda se situa fora do seu âmbito de aplicação (…)”.

Parágrafo n. 108: “Em terceiro lugar, no que se refere ao terminus ad quem, o artigo consagra o momento de apresentação da demanda, ao invés da data da resolução, já que o possível atraso da ação das autoridades competentes não deve prejudicar os interesses das partes amparadas pela Convenção.”

Parágrafo n. 110: “De fato, não se deve esquecer que o que se pretende proteger mediante a luta contra as subtrações internacionais de menores é o seu direito a não ser separado de certo contexto que, em certas ocasiões, será fundamentalmente familiar. Contudo, se o demandante já não vive mais no Estado da residência habitual anterior a transferência, o retorno do menor a este Estado criaria problemas práticos difíceis de serem resolvidos. Portanto, se deve interpretar que o silêncio da Convenção a este respeito permite que as autoridades do Estado de refúgio devolvam o menor diretamente ao demandante, com independência do lugar da sua residência atual.”
Relatório Explicativo Perez-Vera

Embora seja dificil de acreditar (observando a evolução da legislação brasileira), resulta claro que há mais de 40 anos a comunidade internacional já reconhecia corretamente a criança como um sujeito de direito e examinava todas as possíveis soluções admissíveis.

Por unanimidade louvável, a Conferência da Haia estabeleceu que, entre as diversas possibilidades, o melhor interesse da criança subtraída de patamar primordial era garantir o direito humano fundalmental de ter a sua guarda julgada pelo tribunal mais justo, ou seja, aquele mais próximo da prova e da sua identidade cultural, ou seja, da residência habitual.

Quando o retorno imediato não é considerado convencionalmente o melhor para a criança subtraída?

Aqueles que não leram ou esqueceram do que leram do extenso conteúdo presente no Relatório Explicativo da CH80 ou Guias de Boas Práticas da Conferência da Haia, tendem a imaginar empiricamente as motivações por trás das decisões lesiglador internacional.

Muitos argumentam que o retorno é melhor para a criança porque assim ela mantém o contato com o genitor abandonado, porque assim evita o trauma da mudança de residência, porque é necessario restaurar as consequências de uma ação ilicíta, etc.

Nada disso condiz com a realidade.

Como demonstrado anteriormente, o retorno imediato é o melhor para a criança subtraída, pois garante o direito primordial de um julgamento justo de seu direito de guarda. O genitor que busca outra jurisdição está violando o direito da criança a um julgamento justo de seu bem-estar.

Muitos defendem apaixonadamente que o retorno não deve ser decretado em situações de conflito familiar, mas essa é uma semplificação inapropriada de uma questão muito mais complexa.

Em uma comunidade internacional, não se pode presumir que as autoridades de outra nação sejam incapazes de encontrar soluções para os conflitos familiares. Porque o Estado de refúgio, em uma realidade de cooperação internacional, deveria ter o direito de considerar seu judiciário, a priori, melhor do que o de outro país? Por acaso as autoridades brasileiras determinam a expatriação dos próprios cidadãos para resolver os conflitos conjugais?

Estabelecer um julgamento mais justo com base no princípio da proximidade da prova é uma regra elementar do Direito e regulmarmente aplicada na lei interna. Por outro lado, estabelecer que um país possui uma lei ou julgadores melhores do que outros países é um puro fenomeno chovinista.

Logicamente, essa presunção de confiança em relação a justiça estrangeira não impede o reconhecimento de eventuais inaceitáveis ineficiências. Teoricamente, mesmo Estados com uma longa tradição humanista podem falhar.

É precisamente por esse motivo que o Guia de Boas Práticas do Artigo 13b da HCCH estipula que o retorno pode ser negado quando for comprovado, em última análise, que as autoridades da residência habitual não possuem os recursos adequados para proteger a criança da situação familiar denunciada.

O texto da exceção do Art. 13b protege o futuro, não é suficiente uma mera alegação de uma situação intolerável ocorrida no passado. Deve-se provar que as autoridades estrangeiras não aplicam medidas eficientes contra toda forma de violência contra as crianças.

Para garantir coerência a esse princípio da retidão das autoridades estrangeiras e do direito fundalmental de um julgamento mais justo, o legislador internacional avançou com a Convenção de 1996 sobre a Proteção das Crianças, que exclui qualquer exceção ao retorno. Todas as possíveis exceções foram consideradas facilmente superadas pelo poder concedido ao Estado de refúgio para emitir medidas de proteção na jurisdição da residência habitual.

Afinal, é impossível considerar a existência de uma cooperação internacional entre países que tratam os demais com inferioridade. Não por acaso, o Relatório Explicativo da CH80 cita que o art. 20 da CH80 foi aquele com maior dificuldade de formulação pois gerava o risco de avaliações pouco objetivas e vinculadas a arbitrariedade das leis internas, o exato contrário dos objetivos de uma legislação comunitária. Portanto, para aqueles Estados que ainda não ratificaram a CH96 e/ou preferem manter um certo grau de preconceito em relação aos outros países, as exceções ao retorno da CH80 continuam a vigorar, mas devem se deve ter a consciência de que, em geral, se trata de uma realidade jurídica antiquada/superada.

Em todo caso, além da situação familiar intolerável (Art. 13b), o texto da CH80 estabelece que o retorno perde a obrigação de ser decretado quando o genitor abandonado concordou com a transferência da residência ou não exerceu o direito de guarda (Art. 13a), quando na residência habitual não são respeitados os direitos humanos fundamentais (Art. 20), quando o pedido de retorno for tardio (Art. 12), quando a criança tiver mais de 16 anos (Art. 4), ou quando expressar a vontade de não retornar (Art. 13.2)

Para o poder judiciário brasileiro, o grande número de exceções previstas na CH80 não parece ser suficiente. Costumeiramente, são adicionadas outras, como, por exemplo, a adaptação da criança ao país, mesmo essa hipótese sendo expressamente vetada no texto convencional. O suposto trauma da mudança de residência não possui respaldo científico ou jurídico. Desconhece-se qualquer jurisdição ou lei internacional que proíba a transferência de uma criança para outro país na presença de acordo entre os genitores.

Neste contexto, é importante destacar que a CH80 autoriza o retorno mesmo quando as exceções ao retorno são devidamente comprovadas. As exceções nunca impedem o retorno, apenas excluem a obrigação do retorno. Esta é uma condição crucial frequentemente ignorada, já que, na falta de evidências das exceções, as autoridades tendem a negar o retorno. Enquanto a recusa do retorno pode constituir uma violação da CH80, conceder o retorno sempre corresponderá à sua correta aplicação.

A comunidade internacional já promoveu leis que consideravam as crianças como objetos?

Historicamente, o princípio do melhor interesse da criança foi usado pela primeira vez na declaração das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, em 1959. Em 1979, durante os trabalhos preparatórios da redação da Convenção dos Direitos das Crianças, esse princípio foi associado à “consideração primordial” ao invés de “consideração decisiva”, como originalmente formulado.

Em 1980, como indicado no Relatório Explicativo, a CH80 foi redigida prevalentemente pelos países europeus, com base na citada Recomendação 874 (1979) da assembleia parlamentar do Conselho Europeu, cujo primeiro princípio geral evidencia que “os menores não devem ser considerados propriedade dos seus pais, mas devem ser reconhecidos como indivíduos com direitos e necessidades próprias”.

Em 1989, a Convenção da ONU sobre os Direitos das Crianças confirmou os princípios estabelecidos na CH80. Por exemplo, foi estabelecida a obrigação de oitiva da criança, que já tinha sido coerentemente inserida no art. 13 da CH80.

Em 1989, foi publicada a Convenção Interamericana sobre a Restituição Internacional de Menores, que essencialmente replicou integralmente a CH80 com pequenas melhorias. Estas incluíram, por exemplo, a exclusão da “situação intolerável” como exceção ao retorno (condição que pode gerar um abuso de má fé) e o estabelecimento de um prazo de um ano a partir da localização da criança, em vez da data da subtração efetiva.

Em 1996, a Conferência da Haia concluiu a redação da Convenção sobre a Proteção das Crianças, que esclareceu as disposições sobre subtrações e substituiu a versão de 1961. Todas as exceções ao retorno foram removidas e a idade limite do menor tutelado foi elevada para 18 anos.

Desde 1989, a Conferência da Haia realizou oito reuniões entre especialistas de dezenas de nações para discutir a necessidade de alterações nas convenções relacionadas às crianças. No entanto, ao longo de quase 40 anos, nunca foi concordada a necessidade de operar mudanças aos textos convencionais.

Neste resumo histórico, podemos concluir que a cooperação internacional nunca considerou as crianças como objetos e, ao contrário, promoveu a difusão de avanços pioneiros para sua proteção e bem-estar

Atualmente, a justiça brasileira considera a criança como objeto?

Infelizmente, a legislação brasileira, de fato, considera uma criança menos importante do que um objeto.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu no seu artigo 227, pela primeira vez, a absoluta prioridade à defesa de diversos direitos das crianças. A sua formulação é considerada como a concretização do princípio internacional do melhor interesse da criança.

Como mencionado anteriormente, desde 1959, a comunidade internacional estabeleceu o conceito do melhor interesse da criança, e desde 1979, este princípio foi elevado ao patamar de conceito primordial. De fato, o legislador nacional demorou dez anos para absorver os conceitos acordados no âmbito internacional.

Em 1990, mais un avanço foi alcançado com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dessa vez, ocorreu uma absorção mais veloz dos princípios internacionais, pois apenas um ano antes tinha sido aprovada a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança (que levou quase 10 anos de trabalhos preparatórios).

Em relação a guarda compartilhada, considerada a melhor solução para a criança nos casos de conflito conjugal, ela foi legislada no Brasil apenas em 2014, mas o Relativo Explicativo da CH80 demonstra que era um conceito reconhecido pela Conferência da Haia há mais de 40 anos:

Parágrafo 71: Não podia ser de outra forma em uma época em que as legislações internas introduzem progressivamente a modalidade de guarda compartilhada, considerada como a mais adapta ao princípio geral da não discriminação em razão do sexo. Além disso, a guarda compartilhada não sempre é uma guarda ex lege na medida em que os tribunais são cada vez mais favoráveis, se as circunstâncias o permitem, a dividir entre os pais as responsabilidades inerentes ao direito de guarda. Assim, na óptica adotada pela Convenção, a transferência de um menor por um dos seus titulares da guarda compartilhada, sem o consentimento do outro titular, é assim mesmo ilícito: neste caso concreto, a ilicitude não procederia de uma ação contrária a lei, mas do fato de que semelhante ação teria ignorado os direitos do outro progenitor, também protegido pela lei, e interrompido do seu exercício normal. A verdadeira natureza da Convenção aparece mais claramente nestas situações: a Convenção não permite determinar a quem corresponderá no futuro a guarda do menor, nem se será necessário modificar uma resolução de guarda conjunta ditada sobre a base de dados que foram alterados posteriormente; mas simplesmente trata de evitar que a resolução posterior se veja influenciada pela mudança das circunstâncias introduzidas unilateralmente por uma das partes.
Relatório Explicativo Perez-Vera

Como evidenciado, o legislador brasileiro frequentemente se mostra defasado em relação à evolução do direito de família. Pode-se deduzir que, se não fosse pelo impulso da comunidade internacional, muitos princípios jurídicos voltados para o melhor interesse das crianças até hoje não seriam legislados.

De fato, observa-se como a sociedade brasileira em geral tem dificuldade em assimilar as novas leis domésticas que não surgiram de uma demanda interna, mas sim da adoção pelo legislador nacional de conceitos desenvolvidos por outras sociedades.

Por essa razão, não é raro encontrar graves contradições, como os processos baseados na CH80 que se prolongam por 10 anos ou a falta de disposições coerentes sobre a subtração de crianças.

Por exemplo, o Código Penal não reconhece adequadamente o direito das crianças. Apesar do Projeto de Lei 3535/21 que propõe modificar o crime de subtração de incapaz, desde 1940, assim estabelece o art. 249:

Art. 249 – Subtrair menor de dezoito anos ou interdito ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou de ordem judicial:
Pena – detenção, de dois meses a dois anos, se o fato não constitui elemento de outro crime.
§ 1º – O fato de ser o agente pai ou tutor do menor ou curador do interdito não o exime de pena, se destituído ou temporariamente privado do pátrio poder, tutela, curatela ou guarda.
§ 2º – No caso de restituição do menor ou do interdito, se este não sofreu maus-tratos ou privações, o juiz pode deixar de aplicar pena.
Código Penal

No país, não constitui crime um genitor que subtrai o filho do outro genitor. É ainda mais alarmante o fato de não sofrer alguma pena aquele que subtrai uma criança e a restitui sem “mais-tratos ou privações”.

Em contraste, quando alguem rouba um objeto a pena deve ser aplicada mesmo se restituito. Uma criança no Brasil vale menos do que um objeto!

É grave observar que nem o poder judiciário demonstrou interesse em corrigir essa total falta de bom senso. Em 2015, no processo de extradição (EXT) n. 1354 (caso Qvarfordt), o STF estabeleceu que não era crime a subtração praticada por um genitor com guarda compartilhada. No entanto, o mesmo STF declarou a Constituição retrógrada e assim autorizou o casamento homossexual, que é inclusive um tema ainda hoje polemico no mundo. Em outras palavras, contra a violência contra a criança, nenhuma ação, contra o mero direito de se casar, todo arsenal jurídico foi praticado com extrema desenvoltura

A falta de razoabilidade também se observa na pena prevista de 2 anos. Segundo o código penal, Art. 157.IV, no caso de furto de um mero automóvel com transferimento no exterior, a pena é de mais de 10 anos.

Também no quesito prescrição do crime de subtração de incapaz se poderiam levantar diversas críticas.

Nem mesmo no ECA, um orgulho nacional, existe uma punição adequada contra a subtração. O artigo 237, no máximo, estabelece uma pena de 6 anos de prisão para quem subtrai um menor daquele que possui a guarda e apenas no caso de propósito de colocação em lar substituto. É evidente que a lei não leva em consideração a existência da guarda compartilhada, portanto, nenhuma subtração nos termos da CH80 configura esse crime.

A única lei nacional que poderia combater o crime de subtração seria a lei da alienação parental, porém, não há notícia de sua aplicação, já que esta lei se limita a declarar a subtração como violência, sem, porém, impor disposições repressivas, mas apenas enumerando as medidas que o juiz poderia determinar arbitrariamente (por exemplo, inversão da guarda).

Em resumo, não há nada na legislação brasileira capaz de remediar os casos de subtração por parte de um genitor ou o fato de que o interesse da criança possui um valor inferior aquele de um objeto.

Porque se insiste em menosprezar a Convenção da Haia de 1980?

A investigação das causas por trás da persistência em menosprezar a Convenção da Haia de 1980 é um tema extremamente complexo e amplo, intrinsecamente ligado à cultura da nação.

No Brasil, além da falta de legislação contra a subtração, existe até processo de inconstitucionalidade da Convenção da Haia 1980 (ADI 4245) e Projeto de Lei que, vergonhosamente, busca alterar no âmbito nacional o texto concordado internacionalmente (PL 565/2022).

Além disso, ao longo do tempo, se constata um aumento na concessão de espaço aos protestos das mães brasileiras que contestam as autoridades que decidiram pelo retorno das crianças subtraídas (por exemplo, no Senado). Por outro lado, nunca foi dado espaço aos genitores abandonados ou às crianças, vítimas das subtrações.

O único caso em que a mídia brasileira deu espaço à vítima foi no caso Goldman, onde, após anos do retorno, a criança, que alcançou 18 anos, confirmou a sua satisfação em ter tido o seu retorno decretado após 6 anos de estadia no Brasil.

É evidente a prenodminância de uma cultura nacional que despreza o método científico e que se impõe com elevada facilidade mesmo no âmbito judicial, que, ao invés, deveria ser o guardião da coerência na sociedade.

Em 2014, durante o primeiro curso institucional sobre a Convenção da Haia de 1980 publicado no YouTube, o primeiro palestrante, Ministro Resek, destacou a dificuldade do Brasil de garantir o rigor científico. Uma década depois, o primeiro palestrante, Juiz de Ligação da Haia do Brasil, relata com certo orgulho que os países contrários à CH80 organizaram uma reunião internacional excluindo as nações que formularam a legislação internacional.

Ao longo dos anos, ao invés de aumentar a especialização no tema, percebe-se que as autoridades brasileiras estão se afastando cada vez mais do reconhecimento das verdades científicas. Parece que a evidente dificuldade de levantar argumentações válidas para impor diplomaticamente o próprio parecer no cenário internacional está se transformando em uma espécie de luta armada. Se buscam aliados para tentar impor com a força numérica teses incoerentes, como se a verdade científica fosse determinada pelo número de pessoas que pensam da mesma forma e não pelo resultado de uma análise metódica do mérito.

Em geral, o primeiro fator que pode levar a uma convicção equivocada é a falta de especialização e isso é mais do que evidente entre as autoridades brasileiras competentes na aplicação da CH80.

Conforme apontado pelo Prof. Monaco, o direito internacional é um tema relativamente novo e amplamente subestimado no sistema jurídico nacional: as leis nacionais que recepcionam o direito internacional são frequentemente inadequadas; há apenas poucos anos (1996) que essa matéria se tornou obrigatória nos cursos superiores de direito, e; ainda é vista como sem valor, já que sua aplicação normalmente depende da vontade dos países (sem um tribunal internacional com poder efetivo de impor as normas internacionais, considera-se um tema de utilidade limitada).

Não é por acaso que, enquanto outros países consideram a ratificação de qualquer tratado internacional como superior até mesmo à sua própria constituição (como é o caso de muitos países europeus), o Brasil os considera inferiores às leis domésticas. Além disso, mesmo aqueles tratados considerados infraconstitucionais só são aplicáveis na esfera federal, o que exclui a especialização técnica sobre os temas envolvidos.

O Relatório Explicativo da CH80 ressalta que o legislador internacional idealizou a Convenção esperando que fosse aplicada por autoridades especializadas em direito de família:

Parágrafo 44: “(…) são as autoridades encarregadas dentro de cada Estado de resolver sobre a guarda e a proteção dos menores aquelas que a Convenção confia a responsabilidade de resolver os problemas levantados, seja que se trate do retorno de um menor transferido ou retido de forma ilícita ou da organização do exercício do direito de visita (…). De fato, mesmo que as resoluções sobre o retorno dos menores não prejudiquem o fundo do direito de guarda (ver artigo 19), vão ter uma influência notável na vida dos menores interessados; daí que a adoção de tais decisões, a assunção de semelhante responsabilidade, devem corresponder necessariamente às autoridades habitualmente competentes segundo o direito interno“;
Relatório Explicativo da CH80

No entanto, no Brasil, a Justiça Estadual, especializada em direito de família, até hoje não pode ser acionada em um pedido de aplicação da CH80. Até mesmo os EUA que possuem um elevado orgulho nacional alteraram a própria lei para permitir que a CH80 pudesse ser julgada coerentemente por juizes especializados.

Devido a essa falha estrutural significativa, muitos dos conceitos abertos apresentados na Convenção da Haia de 1980 acabam sendo facilmente distorcidos. É inimaginável esperar que a Justiça Federal tenha a expertise necessária para, por exemplo, auxiliar na conciliação ou estabelecer medidas de proteção como o direito de visitação cautelar ou pensão alimentícia.

No própio seminário onde se defende unanimente a competência da Justiça Federal, se ouve o testemunho da Desembargadora Paiva (TRF3) que admite o alto grau de inadequação da ação judicial na falta de conhecimento e experiência em direito familiar.

Diante da falta de especialização, o poder judiciário se depara com duas opções: permitir que o tempo passe enquanto se reflete qual decisão proferir (permitindo que os processos durem 10 anos, em vez das 6 semanas previstas na CH80) ou impor avaliações transversais, como testemunhado pelo Desembargador Batista (TRF4) durante recente seminário citado na inicial (desconhecendo a CH80 e o direito de família, procura-se decidir em conformidade com os costumes).

Há 40 anos atrás, o Relatório Explicativo da CH80 já previa e identificava o fato de que cada nação estabelece o destino das crianças predominantemente com base em sua própria cultura e que só seria possível encontrar um acordo comum utilizando uma tese universalmente aceitável, como o princípio da proximidade da jurisdição da residência habitual.

Após todos esses anos parece claro que a Conferência da Haia, para combater as subtrações, deve antes conseguir conscientizar inteiras culturas que de um dia para o outro descobrem ter assumido um compromisso internacional.

Não tem sentido esconder o sol com a peneira e não reconhecer que o caos social da realidade brasileira comporta a instituição de leis incoerentes que obrigam o poder judiciário a tentar corrigi-las autonomamente, sem qualquer preocupação em ser acusado de assumir um papel de legislador abusivo.

Nos países europeus, os juízes não costumam alterar as leis e, normalmente, solicitam ao legislador a correção de leis ou a verificação da constitucionalidade de uma norma antes de tomar uma decisão. Por exemplo, na Itália, em um caso de pedido de suicídio assistido, o judiciário recentemente comunicou ao parlamento italiano que, caso não fosse elaborada uma regulamentação dentro de um ano, eles decidiriam autonomamente.

No Brasil, por outro lado, tornou-se quase uma regra aplicar a própria opinião pessoal em vez de seguir estritamente a letra da lei. Especialmente no caso de leis internacionais, que geralmente são consideradas de importância inferior no âmbito nacional, parece ainda mais fácil justificar a violação de determinações legais claras. Nações que não priorizam as leis, por diversos motivos, legítimos ou não, têm sérias dificuldades em aceitar que o poder judiciário de outra nação seja capaz de lidar satisfatoriamente com qualquer problema familiar.

Numa sociedade caótica, cada um acredita bastar pouco para se considerar dotado de inteligência ou competência superior, em meio a graves incoerências enfrentadas diariamente. Parece fácil e até obrigatório se sentir como o salvador da pátria, com os bolsos cheios de verdades universais a serem distribuídas.

No entanto, assim como não tudo no Brasil é caótico, não se deve deduzir que toda sociedade convive com um sistema jurídico com graves incertezas. Como bem testemunhado pelo Desembergador Maurique há 10 anos atrás, é completamente ilógico cultivar no Estado de refúgio o sentimento de se autoprocalamar como um julgador melhor e/ou possuir um contexto legislativo superior aquele da realidade da residência habitual. Posições deste tipo destroem o espírito unificador dos tratados no âmbito internacional e, no geral, alimenta absurdos conflitos de competência.

Em resumo, a CH80 é uma das convenções mais adotadas no mundo, foi construída com a soma das inteligências dos especialistas de diversas culturas, é concorde com princípios declarados em convenções sucessivas, periodicamente as nações verificam a eventual necessidade de atualizar a sua redação e em mais de 40 anos nunca foi concordado qualquer alteração, parece impossível conseguir encontrar críticas válidas a um texto exageradamente respaldado.

Não é mais provável que um país como o Brasil, desde sempre considerado mundialmente como desrespeitador da CH80 (do report anual do governo americano até casos de genitores dinamarqueses que sequestram os filhos e fogem para o Brasil), não necessite na verdade de mais estudo e reflexão para encontrar sozinho resposta àquilo que considera equivocado no texto da convenção?

Porque tanto se afirma que a CH80 não leva em consideração a violência doméstica?

Em uma sociedade como aquela descrita anteriormente, caracterizada pela negligência das autoridades em relação ao rigor científico, favorecendo assim as vontades pessoais e opiniões subjetivas, é comum admitir de forma arbitrária questões desconexas ou não devidamente fundamentadas.

Como será explorado adiante, as subtrações não estão necessariamente ligadas à violência doméstica e a exceção ao retorno não é justificada meramente pela presença de conflitos familiares passados. É necessário comprovar que a autoridade da residência habitual é incapaz de evitar que a criança seja exposta a uma situação intolerável.

Quando a sociedade tolera o hábito de considerar uma criança como mero objeto de propriedade materna, quando a legislação atribui mais valor ao furto de um objeto do que à violência causada pela subtração de uma criança, quando nas novelas e demais programas de televisão costumeiramente se apresentam casos graves de conflitos conjugais e reações que ultrapassam os limites da civilidade, quando nas ruas predomina o orgulho de observar as mulheres como objeto sexual, quando é comum conviver com graves impunidades como aquelas do caso Maria da Penha, etc, surge uma tendência a presumir que toda subtração é o resultado de um conflito conjugal violento, no qual a mulher é forçada a fugir com seu filho para livrar ambos de uma situação intolerável.

No entanto, devemos nos perguntar: a verdade deve ser moldada pela influência da realidade social pessoal ou pela análise imparcial e consistente dos fatos? É possível que algumas mães usem a subtração como uma extensão do conflito conjugal para a esfera parental?

Como bem explicado por Ignacio Goicoechea, representante da Coferência da Haia na America Latina, a violência doméstica, por diversos motivos, não tem conexão natural com as subtrações internacionais.

Conforme mencionado no Relatório Explicativo da CH80, no passado, o pai era o principal subtrator dos filhos. Nos últimos anos, entretanto, é a mãe que subtrai os filhos na esamagadora maioria dos casos. Esses são dados estatísticos certos assim como é certo que praticar a subtração é uma violência contra a criança.

Os defensores da filosofia feminista atribuem esses dados ao aumento da violência contra as mulheres. No entanto, uma análise mais científica sugere que essa não parece ser uma conclusão razoável.

Em geral, os homens estão se tornando mais violentos em todo o mundo? De acordo com as estastísticas brasileiras, a violência urbana continua alta e relativamente estável, os feminicídios aumentam, aumenta a sensação de insegurança entre as mulheres, o país é o quinto no mundo por mortes violentas, etc. Por outro lado, na Itália, por exemplo, os índices de feminícios são estáveis (cerca 120 por ano) e os casos de violência familiar se mantém decrescentes.

Quanto às medidas de proteção, parece desnecessário apresentar dados capazes de comprovar que há um aumento constante de leis e políticas em todo o mundo voltadas para proteger as mulheres contra qualquer forma de violência ou discriminação.

Logicamente, se as proteções estão se ampliando e as sociedades estão cada vez mais conscientes da necessidade de combater a violência contra as mulheres, por que então haveria um aumento na tendência das mulheres de subtrair os filhos para buscar proteção?

É mais plausível reconhecer que o avanço das leis em prol das crianças, como a prevalência da guarda compartilhada, aliviou a insatisfação passada dos homens em relação à falta de contato com os filhos após a separação. No entanto, isso aumentou a insatisfação das mulheres, que agora não têm mais o controle exclusivo sobre a vida dos filhos e/ou precisam garantir um amplo direito de acesso ao outro genitor.

No contexto das subtrações, a alegação de violência doméstica pode ser facilmente manipulada para justificar ou legalizar a subtração, especialmente em culturas como a brasileira. Por exemplo: se a mãe possui provas de violência, é considerado justo apresentá-las apenas no Brasil pois no exterior as mulheres e os estrangeiros são sempre discriminados; se o pai pratica violência exclusivamente contra a mãe é justo distanciar também a criança; se a mãe não dispõe de provas de violência psicológica, presume-se que tenha perdido a noção dos limites de um conflito conjugal em consequência do enfraquecimento psicologico sofrido; não se observa contradição na mãe que alega nunca ter reagido ou buscado justiça por medo e a subtração praticada que é uma forma de reação que viola diversas leis. Em resumo, justificar a subtração é a regra, não a exceção.

Por outro lado, em outras culturas, não é tão simples fingir a existência de uma situação de violência doméstica para justificar uma subtração. As autoridades brasileiras, por não estarem familiarizadas com a realidade de outros países e por não se esforçarem em compreender essa realidade (os Juízes de Ligação da Haia geralmente não são contatados), costumam julgar as situações levantadas com base em projeções pessoais e frequentemente desconexas dos fatos reais.

Por exemplo, muitos consideram um absurdo uma mãe que, no processo de separação, reclama sofrer violência física e ouve do juiz estrangeiro que no momento está decidindo sobre a criança, como narrado em seminário sobre a CH80. Em outras culturas é natural considerar que os casos de violência física se resolvem denunciando o fato e acompanhando o relativo procedimento que determinará todas as proteções urgentes e punições cabíveis (incluindo, por exemplo, a exclusão do pátrio poder) e não buscando usar essa argumentação apenas no processo de separação com o fim de obter a guarda exclusiva da criança e/ou excluir o pai da vida do filho.

Em todo caso de separação, é razoável presumir que a justiça local de qualquer país conceda a proteção adequada, especialmente no caso de uma mãe vítima de violência. Em qualquer parte do mundo, uma mãe que luta pela guarda de seu filho tem a expectativa de receber uma decisão favorável, especialmente se houver evidências de violência doméstica.

Porque subtrair o filho? Não será porque o objetivo real/principal é retornar ao país de origem e não simplesmente resolver o conflito conjugal?

Conforme destacado no Relatório Explicativo da CH80, aqueles que praticam a subtração geralmente buscam escolher a jurisdição que mais favoreça seus próprios interesses em relação à guarda dos filhos.

Por exemplo, na America Latina em geral se concede as mães maiores vantagens em relação à guarda. Existe caso até de genitor que mudou legalmente de sexo para tentar obter um julgamento equilibrado e imparcial da guarda das filhas.

É claro que o sistema judicial brasileiro enfrentará dificuldades significativas ao verificar a veracidade de uma alegação de violência, dada a falta de familiaridade com a realidade e o contexto social da família. O que impede uma mãe de manipular a seu favor a popular defesa do gênero, o preconceito nacional em relação a outras nações ou o orgulho nacional de se considerar mais competente do que as autoridades estrangeiras?

O artigo 13b da CH80 protege exclusivamente a criança. Isso é natural já que nem toda situação de violência doméstica afeta o filho e a subtração da criança não é a solução geral para tais casos.

Se a CH80 estabelecesse que toda e qualquer violência doméstica praticada exclusivamente contra a mãe pudesse justificar uma subtração, estaria ignorando evidências científicas amplamente reconhecidas. A independência entre o conflito conjugal e o parental é algo reconhecido há tempos pelos especialistas nesse campo.

Entretanto, essa realidade científica muitas vezes não é aceita pela população em geral, que carece de conhecimento especializado. Há uma tendência arraigada em considerar as mães como genitores ideais, enxergando a criança como um objeto que deve acompanhar todas as vontades da mãe. Qualquer ato violento é atribuído à suposta natureza agressiva do pai, rotulado como intrinsecamente violento. Portanto, todas as crianças ao redor são potenciais vítimas e devem ser afastadas.

Existe processo em andamento no STJ onde o pai é acusado de ser violento por enviar mensagens à mãe. Além dessas mensagens serem apenas irônicas e sucessivas à subtração, a criança tinha 1 ano de idade quando foi subtraída. Em todos os níveis judiciais, tanto os juízes quanto o MPF estabeleceram a exceção ao retorno com base em alegações de violência psicológica contra a mãe. Será realmente lógico admitir que o conflito conjugal se estende sempre ao âmbito parental? A criança de um ano estaria lendo as mensagens recebidas privadamente pela mãe e assim sofreria uma situação intolerável?

O texto da CH80, justamente, pretende a demonstração de que uma situação de violência doméstica também envolva a criança e isso não significa ignorar a proteção da mãe. O legislador internacional busca evitar que a criança seja usada como instrumento de defesa do interesse da mãe no conflito conjugal. Toda mãe pode combater pelo proprio interesse usando as leis reconhecidas na residência habitual especificamente para este fim.

Portanto, a CH80 não ignora a violência doméstica, ela simplesmente restaura civilidade na resolução desse problema. Contestar tal mecanismo significa deixar se influenciar por hábitos sociais cientificamente incoerentes.

De fato, o princípio nacional da superioridade da mulher como genitor encobre o enaltecimento de uma sociedade machista, onde o homem é designado ao trabalho enquanto a mulher assume a responsabilidade pelos cuidados das crianças. A verdadeira emancipação da mulher deveria ser conquistar a sua independência e compartilhar com o homem à atenção que se deve conceder aos filhos.

Em países considerados desenvolvidos, ambos os genitores geralmente trabalham para conseguir sustentar o lar, compartilhando assim as responsabilidades familiares de forma equilibrada. Portanto, nessas sociedades é mais fácil reconhecer que ser um bom genitor não está condicionado ao gênero

Embora muito seja exaltado sobre a lei Maria da Penha, muitas vezes se esquece que esta lei foi criada graças a uma intervenção de um tribunal internacional que julgou o Brasil como tolerante em relação à violência contra a mulher.

Toda evolução do grau de civilidade das leis nacionais parece ser inspirada nas normas da comunidade internacional, como é possível continuar a menosprezar a CH80 ao invés de se questionar se a fonte dos problemas não se encontra na realidade interna?

Como melhorar a aplicação da CH80?

Um país que busca ser sério deveria, primordialmente, considerar retirar sua ratificação de uma convenção em vez de desrespeitá-la de forma flagrante.

Um exemplo notável é o dos Estados Unidos, que são reconhecidos como um dos maiores contribuintes e defensores globais dos direitos das crianças, mas curiosamente são o único país que não ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança. Isso se deve em parte à considerável autonomia jurídica concedida aos seus estados e ao fato de que alguns deles ainda aplicam a pena de morte até mesmo a menores de idade. Assim, seria incoerente ratificar um texto legal que se sabe que não seria plenamente cumprido.

Se a realidade brasileira impede uma compreensão correta da CH80 e/ou o país não consegue persuadir a comunidade internacional sobre a necessidade de alterar o texto da convenção, por que então prefere manter o ilícito de declarar adesão e, ao mesmo tempo, desrespeitá-la?

Se o Brasil realmente deseja melhorar a aplicação da CH80, porque não ratificar a Convenção de 1996, que é reconhecida pela Conferência da Haia como um instrumento jurídico capaz de superar as limitações da CH80?

Infelizmente, o que se pode concluir é que o objetivo das autoridades brasileiras é, na prática, legalizar os casos de subtrações para o Brasil, mantendo assim a coerência com a realidade social dominante.